terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A CRIANÇA E A SUA CULTURA LÚDICA


A proposta de um novo jogo a ser jogado na escola, deva começar pela observação e pelo entendimento de quem está melhor habilitado para o jogo... A criança.


Em minha pesquisa de campo na Escola Salesiana da colônia, pude perceber a necessidade de desenvolver nas nossas crianças, capacidades expressivas, porque, além de permitir a libertação da sua criatividade (e conseqüentemente do seu sentido crítico), conduzirá, por outro lado, a estádios mais complexos de pensamento. Por isso, é absolutamente fundamental proporcionar-lhes experiências na pintura, na modelação, na música, na dança, na dramatização, etc. Experiências essas que não devem limitar-se a fazer a criança seguir um conjunto de ações planificadas pelo educador mas também (e sobretudo) permitir-lhes fazer as suas próprias criações nas diversas formas de expressão.
As criações da criança, desde as mais simples às mais elaboradas, representam no fundo a sua vida interior e afetiva, e fazem-nas ultrapassar o seu universo próprio, construindo novos universos num processo de permanente continuidade e aperfeiçoamento.
O que aqui se trata, portanto, é da educação da sensibilidade que é afinal o cerne da educação global do indivíduo, na medida em que representa uma forma de integração entre as diversas vertentes da vida humana: a física, a intelectual, a espiritual e a social -- isto é, trata-se de ajudar a pessoa a conhecer a si própria e a relacionar-se com a sua personalidade para que possa, então, partir para a descoberta do mundo exterior. E o jogo e a recreação podem contribuir para isto. Inventar uma história, fazer música, fazer um desenho ou outro produto expressivo qualquer e analisá-lo em termos críticos são formas de estimular a sensibilidade da criança ou do adolescente, contribuindo para a integração da sua existência interior e para a construção psicológica da sua personalidade.
E é, em torno desta estrutura, que irão funcionar todas as outras atividades mentais. Ignorar este fato e orientar os alunos para a aprendizagem exclusiva da leitura, da escrita, do cálculo e das aptidões profissionais é amputar-lhes grande parte da sua sensibilidade o que não é menos nefasto que lhes amputar um braço ou uma perna.
A escola hoje, vem na maioria das vezes, considerando-se, a única detentora do saber e trata o aluno como um recipiente vazio onde esse conhecimento é depositado.

Em nossa opinião, levar as pessoas à autonomia deveria ser uma das principais metas da educação e o jogo apareceria, então, como um dos mais apropriados meios para se conduzir a essa autonomia, pois através dele é possível formar sujeitos capazes de cooperar, de questionar, criticar e transformar.
Inicialmente Benjamin lembra que as crianças são bem diferentes do modo como os adultos as concebem ou as conceberam ao longo da história. A noção de infância que herdamos de épocas anteriores e que são preservadas ou aprofundadas pela pedagogia não cabe à realidade infantil: a “criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis... A criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas”.[1]
Benjamin acentua que “as cores na vida da criança são a pura expressão da sua pura sensibilidade,” meio pelo qual ela própria se orienta no mundo. As cores contém o ensinamento de uma vida espiritual que é criadora na medida que os condicionamentos e as causas menos as habitem.[2]
As possibilidades de uma nova experiência estão, basicamente, na narrativa, na arte e na vida infantil: do mesmo modo como o narrador, ao contar estórias, transporta o leitor para um tempo em que “o homem podia acreditar-se em sintonia com a natureza e” acreditar que “os planetas nas alturas do céu ainda se preocupavam com o destino dos homens”,[3] o artista questiona o sentido dado das coisas no contexto da produção moderna e confere ao objeto um novo significado no âmbito do seu trabalho; a criança, nas brincadeiras, evidencia afinidades e supera antinomias ao fazer-se igual à matéria que a circunda para criar seu próprio mundo no qual os objetos ganham vida e sentido.
A variedade do colorido do desenho infantil e o modo peculiar de apreender as cores em sua transparência é expressão do modo infantil de ver o mundo e romper limites, assim como os jogos são mecanismos de conhecimento concreto do mundo por meio da mímesis. As brincadeiras, em suas mais variadas modalidades, manifestam a importância da mímesis na apropriação do mundo.
A criança que brinca cria com seus brinquedos e estes são “tanto mais verdadeiros quanto menos dizem aos adultos”, isto é, quanto mais atraentes e sofisticados, mais perdem o caráter de instrumentos de brincar; quanto mais imitam o mundo adulto, “mais longe estão da brincadeira viva”. A “imitação está em seu elemento na brincadeira e não no brinquedo”, ou seja, imitar não é reproduzir, mas identificar-se para compreender: a “criança quer puxar alguma coisa e se transforma em cavalo, quer brincar com areia e se transforma em pedreiro, quer se esconder e se transforma em bandido ou policial”,[4] quando não se transforma em “moinho de vento e trem”, imitando não só as pessoas, mas todas as coisas.[5]
“Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido. Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando, em seu interior, passava a mão de um vidro a outro, ia me transformando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela... Acontecia o mesmo com minhas aquarelas, onde as coisas me abriam seu regaço tão logo as tocava com uma nuvem úmida. Coisa semelhante se dava com as bolhas de sabão. Viajava dentro delas por todo o recinto e misturava-me ao jogo de cores de suas cúpulas até que se rompessem. Perdia-me nas cores, fosse no céu, numa jóia, num livro. De todo modo, as crianças são sempre presas suas”.[6]

As cores são o meio de identificação com as coisas e de integração na mudança e no movimento da fantasia que percebe e participa do inacabamento das coisas fazendo-se. Perder-se nas cores é uma forma de perceber correspondências e de habitar o mundo sem a preocupação de definir ou respeitar limites.
A criança se entrega à magia e ao encantamento que envolvem a brincadeira: “quando ela faz caretas e dizem-lhe que basta o relógio bater e ela terá de permanecer assim”, expressa a mesma magia e verdade que “ela sabe no esconderijo: quem a descobre pode fazê-la enrijecer como ídolo debaixo da mesa, entretecê-la para sempre como fantasma no pano da cortina, encantá-la pela vida inteira dentro da pesada porta”. Por isso, ela espera ansiosa ser descoberta e, “com um grito alto ela faz partir o demônio que a transformaria assim”, antecipando o momento da descoberta “com um grito de autolibertação”.[7]
“mesmo na sua forma mais rígida conservam até o fim alguns resíduos da brincadeira”.
Walter Benjamin


[1] BENJAMIN, W., Livros infantis antigos e esquecidos. In: Obras Escolhidas I, p. 236-237.
[2] BENJAMIN, W., Die Farbe vom Kinde aus betrachtet. GS. VI, p. 111.
[3] BENJAMIN, W., O narrador, p. 266.
[4] Idem, p. 247.
[5] BENJAMIN, W., A doutrina das semelhanças, p. 108.
[6] BENJAMIN, W., Infância em Berlim por volta de 1900. In: ______. Obras Escolhidas II,... p. 101.
[7] BENJAMIN, W., Criança escondida. In: Rua de Mão Única, p. 39-40.

Ângelo gutemberg
Artista-plastico, arte-educador e Filósofo.

Um comentário:

Unknown disse...

Antes de mais nada, parabéns pela sensibilidade da página.
Creio que do ponto de vista psicológico o brincar está mesmo presente em todo o desenvolvimento da criança, vislumbrado nas mais diferentes formas de modificação comportamental. Aos olhos da criatividade, tanto o ato de brincar como o ato criativo estão centrados na busca do "eu". É mágico! pois é no criar que brincamos, fazendo uso de próprio potencial.